Governança sem governo:
a nova fronteira da humanidade
Celso Cláudio de Hildebrand e Grisi é professor da FEA/USP, diretor de marketing da Fundação Instituto de Administração e Coordenador do Programa de Administração do Comércio Exterior Brasileiro da FIA.
A negociação para a liberalização do comércio mundial, conhecida como Rodada de Doha e conduzida pela OMC, não conseguiu prosperar. As negociações em Copenhague sobre o clima, no último mês de dezembro, também não prosperaram. Num e noutro caso, os Estados nacionais mostram-se incapazes de estabelecer consensualmente um regramento para o comportamento das partes, comprometendo as soluções para os problemas que desafiam o equilíbrio social e a preservação de condições ambientais para a sobrevivência da própria humanidade. Dois fracassos do multilateralismo, constatados a partir da redução do peso relativo das grandes potências nessas negociações e da insistência deliberada em negar abrigo aos interesses de potências emergentes. Erro que o G-20 não cometeu. E, por isso, só ele avançou.
São muitos esses avanços na reestruturação das finanças internacionais, com o estabelecimento de instrumentos de regulação e controle dos estados sobre as economias nacionais. Em grande medida, o sucesso do G-20 parece ter decorrido de esforços de coordenação, sem precedentes na história diplomática, entre governos de todo o mundo, com o objetivo de evitar que a crise financeira mundial alcançasse proporções semelhantes à Grande Depressão de 29. Pouco mais de um ano atrás, o mundo vivia uma crise financeira, acompanhada de uma severa recessão, em processo marcado pela destruição de riqueza e pelo declínio abrupto do comércio e dos níveis de emprego, em escala mundial. A incorporação de novas elites negociadoras e a discussão sobre mudanças no equilíbrio do poder no Fundo Monetário Internacional e no Banco Mundial trouxeram novas formas de relacionamento entre ricos e emergentes. As discussões contaram, a partir de então, com a participação dos países em desenvolvimento nos organismos incumbidos de estabelecer normas para o sistema bancário e para o mercado de valores, bem como na construção de um novo sistema de avaliação mútua de políticas econômicas e financeiras. Realmente não foi pouco. Tratou-se de uma obra da engenharia da cooperação, sustentada pelos melhores princípios da simetria negociadora.
Durante 2009, o G-20 transformou-se no principal fórum de cooperação econômica. Suas recomendações triplicaram os recursos do FMI, induziram a transferência de parte das cotas do Fundo a países emergentes e em desenvolvimento que se encontravam sub-representados e promoveram, entre os países membros, o compromisso de submeter seus conceitos de política econômica a uma “avaliação mútua”, com assistência do Fundo. Consensos de Washington, nunca mais!
Merece serem lembrados, entretanto, os erros e frustrações de 2008, quando o G-20, por meio de seus membros, comprometeu-se em não adotar nenhuma política protecionista que pudesse impedir o crescimento do comércio mundial. Não foi o que aconteceu. Todos os países negaram o compromisso assumido e retomaram suas práticas protecionistas. Tudo ao melhor estilo das negociações internacionais, onde compromissos são assumidos, muitas vezes, sem que haja um convencimento de suas relevâncias, dando ensejo a exceções que justificam procedimentos contrários e tornam ineficazes os acordos pretensamente alcançados. O problema maior será o de estabelecer as prioridades de governança que devam orientar as ações nos próximos anos. Para tanto, os membros do FMI, acolhendo proposta do G-20 para a revisão da missão do Fundo, querem implantar, ainda nesse ano, as chamadas “Decisões de Istambul”. São medidas de reformas no Fundo, que prevêem novas definições para sua missão, seu papel financiador, suas regras de governança e a redefinição das funções de vigilância multilateral. Trata-se de rever completamente a instituição e suas funções no mundo. A missão revisada não altera a importância da busca pela estabilidade financeira mundial e pelo crescimento sustentável, mas acrescenta, com clareza, que a alta nos fluxos internacionais de capital, as inter-relações entre os mercados financeiros e as posições de ativos transnacionais requerem uma profunda transformação na forma de execução dessa missão. Com base nisso, o papel de financiador da instituição deve prever o envolvimento de todos os países membros. Alguns desses países, objetivando protegerem-se das eventuais adversidades externas, acumularam enormes reservas cambiais, comprometendo sua administração monetária interna. Como consequência, suas taxas de câmbio sofrem distorções que afetam as correntes de comércio e põem à prova a eficiência da alocação dos capitais, tanto internamente, quanto em termos internacionais. Em seguida, o conselho do FMI reafirmou a proposta do G-20 de alteração de, pelo menos, 5% na distribuição de suas cotas, até janeiro de 2011. O propósito é a de buscar maior equilíbrio no processo decisório, com a transferência de cotas dos países representados de forma excessiva para os mercados emergentes e nações em desenvolvimento com representação reduzida nos processos decisórios da instituição. Não se trata apenas de medida de natureza democrática, mas de mudança fundamental na tomada de decisões, tornando o processo receptivo a realidades antes ignoradas. Em adição, o conselho do FMI deu endosso à proposta do G-20 no sentido de, utilizar sua ampla experiência, no auxílio aos países em suas revisões mútuas de políticas econômicas. Finalmente, recomendou-se seja levada a cabo a reforma da regulamentação do sistema bancário, evitando a complacência, mas, simultaneamente, a sobrecarga do sistema com a regulamentação excessiva.
Nesse ano, o G-20 e seu novo modelo de governança serão postos à prova. Estado s Unidos e China serão protagonistas de questões monetárias, decorrentes dos grandes superávits chineses em suas contas externas e dos grandes déficits americanos nessas mesmas contas. Os Estados Unidos culpam a China, com sua moeda artificialmente desvalorizada, de contribuir para o prolongamento da crise, ao gerar enormes superávits comerciais e financeiros que provocam aumento da liquidez global, e cuja disponibilidade de dinheiro infla as bolhas especulativas. A China argumenta que a atual estagnação japonesa nasceu da valorização do yen em relação ao dólar, nos anos 80, por motivos semelhantes aos apontados hoje contra ela, e acusa os Estados Unidos de fugir as suas reais responsabilidades, por serem os americanos os maiores responsáveis pelo excesso de liquidez internacional, com seus juros baixíssimos e seu consumismo movido pela expansão estabanada do crédito em seu território.
Muito embora as condições mundiais ainda imponham sérios desafios à recomposição da atividade econômica, a aparição do G-20 como ator decisivo nessa crise permitiu um aumento significativo da cooperação econômica em função da articulação de seus membros na formulação de políticas econômicas convergentes. E mesmo que se argumente que cada país tenha socorrido apenas suas próprias economias, as decisões tiveram as mesmas direções e sentidos. Os objetivos que as nortearam eram os mesmos e, ainda que as situações colocassem interesses em pólos opostos e, como no caso dos Estados Unidos e da China, evitaram-se sempre medidas que pudessem comprometer a eficácia das soluções encaminhadas em outras economias. Inaugurou-se no campo econômico o exercício pela busca do consenso, por meio de consultas prévias, contatos entre chefes de estados, intercâmbio de informações. Transparência, entre os membros do G-20, tornou-se o princípio básico a nortear as decisões de seus membros do G-20. Uma nova prática de governança mundial, para substituir a inexistência uma autoridade central. A mais contundente demonstração empírica de que a governança pode existir sem governo algum.
Em abril desse ano, os ministros da Fazenda dos países que compõem o G-20 estarão participando da reunião anual do FMI. Na pauta, nada menos que a discussão da proposta americana sobre os mecanismos de avaliação de políticas econômicas do grupo, com elaboração de alternativas e definição de elementos para a construção de prognósticos sobre os desempenhos das economias nacionais e mundial. Em discussão, ainda, a subvalorização da moeda chinesa e as ameaças derivadas do atual excesso de liquidez nos mercados internacionais. Uma pauta simplesmente impensável para um grupo como esse, ano atrás.
Ao olhar para outros fóruns e suas questões, como a liberalização do comércio e as mudanças climáticas, voltam-me à lembrança metodologias tradicionais das negociações internacionais: nos primeiros rounds colocamos as posições mais extremadas; nos próximos, negociamos lentamente, as concessões recíprocas. Todos procuram ganhar o máximo ou perder o mínimo. Resta saber se essas posturas negociadoras, em assuntos dessa natureza, são obras da racionalidade ou da imbecilidade humanas. Afinal, é a humanidade - e não só parte dela-, quem precisa ganhar.
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