Roberto Luis Troster avalia a recente recuperação da importância do crédito na política econômica brasileira.
Veículo: Boletim de informações da FIPE |
O crédito volta a
ter um papel importante na política econômica com o anúncio de que será usado
para acelerar a economia brasileira e também para contrabalançar os impactos
adversos da crise na Europa. Um ponto importante no desenho da política monetária
é a sua potência. A questão é se a atual estrutura de crédito tem capacidade
de cumprir sua tarefa ou se é necessário fazer algo a mais para que cumpra seu
papel a contento.
O
Brasil tem um sistema de intermediação financeira sofisticado e sólido, uma
rede de abrangência nacional e capital excedente que permite expandir a oferta
de crédito de forma contundente. Entretanto, é imperativo fazer ajustes para
que o sistema financeiro possa cumprir sua missão basal. A dinâmica atual,
embora não apresente problemas no horizonte, tem sinais de baixa potência.
Há um padrão que se
repete em todos os ciclos de intermediação. É composto de quatro fases: verde − contribuição; amarela − fragilização; vermelha − crise e, por
último, cinza − recuperação. A intensidade e duração de cada uma varia de país
a país. Em todos, no início do ciclo, os bancos canalizam fundos para o
desenvolvimento do país; no final, seu papel é transferir riqueza dos devedores
para rentistas com prejuízos para o bem-estar da sociedade.
A
fase verde exige uma construção adequada, o que garante uma relação
crédito/PIB elevada e estável. Sua arquitetura é específica para cada sociedade no
desenho de instituições, regulamentações, supervisão, tributação,
concorrência e gestão de transformações, devendo ajustar-se às mudanças na
economia, na tecnologia, nas inovações financeiras e na dinâmica bancária.
Alguns países como Alemanha e Canadá conseguem se manter nesta etapa apesar dos
vizinhos.
À
medida que o tempo passa, os sistemas financeiros têm partes que se tornam
obsoletas, vão amarelando. É um processo sutil e demorado, mas é inexorável;
há uma fragilização por falta de adaptações. A pressão por lucros aumenta, a
percepção de risco diminui, as decisões de tomadores são mais pautadas pela
rolagem de dívidas do que por critérios econômicos, e banqueiros se guiam mais
por considerações sobre liquidez de curto prazo do que solvência de longo
prazo. Sinais de distorções abundam. A intermediação se desvirtua. Em alguns
poucos países são feitos ajustes; na grande maioria a omissão das autoridades é
ampla, geral e irrestrita, afinal, o sistema apresenta sinais de solidez e rentabilidade.
Exemplos ilustram essa mudança do verde para o
amarelo. No Japão, no início da década de 1980, o sistema bancário propulsou o
milagre; depois, aos poucos, mudou seu papel e inflou a bolha imobiliária que
levou à crise.
Nos
Estados Unidos, no começo da década passada, o crédito estimulou a construção civil acelerando a economia; a partir de 2005, distorções como o
aumento de empréstimos predatórios e da quantidade de estruturas financeiras
inconsistentes eram cada vez mais visíveis. A liquidação do Bear & Stearns
foi um sinal de alerta forte, que não foi sequer ouvido. O modelo financeiro
americano estava fragilizado, mas era lucrativo. O catalisador da crise foi a
quebra do Lehman Brothers, mas poderia ter sido qualquer outro.
No
Japão, no Brasil de 1999 e em outros países, a trama é a mesma e a atriz
principal é sempre a complacência. O colapso pode ser bancário, fiscal,
externo ou empresarial, ou uma combinação de alguns deles, simultâneos ou em
sequência. Em todos os casos, a estrutura da intermediação, parcial ou total,
rui. É a fase vermelha, prelúdio da cinza. O discurso nessa etapa é o de
atribuir o colapso a problemas no resto do mundo, à ganância de banqueiros, à
inevitabilidade de crises e à regulamentação inadequada; as causas principais
da crise, que são a arquitetura obsoleta do sistema, a omissão e a má gestão
das autoridades, raramente são mencionadas. Um fato a lamentar em todas é que
a tolerância com desajustes vira a matéria-prima para as finanças
predadoras.
A
fase cinza, da resolução, demanda tempo e alterações na arquitetura financeira. Os japoneses estão tentando há quase duas décadas, os
americanos ainda não acharam o caminho. Há também casos de saídas rápidas de
crises. A brasileira de 1999 é uma: a receita do sucesso foi a mudança radical
do modelo, com a adoção do regime de metas de inflação, câmbio flexível e responsabilidade
fiscal. Outro exemplo é a Argentina em 2001, com o fim do “corralito”,
o abandono do câmbio fixo e a renegociação. Nos dois casos, as transformações
efetuadas foram fundamentais para uma transição rápida e a retomada do crescimento.
A
grande questão é o Brasil atual. É preocupante, pois está amarelando cada vez
mais, com um pouco de verde pálido e algumas partes em cinza escuro. Como
esmeralda temos a solidez (não a estabilidade e a rentabilidade do sistema
brasileiro, que tem um patrimônio líquido de R$ 450 bilhões, um capital
excedente de R$ 70 bilhões para absorver perdas e um lucro de R$ 17 bilhões só
no último trimestre, encerrado em setembro de 2011. Temos também o crédito
direcionado com uma taxa média de 10% ao ano crescendo a 20% ao ano, há
instituições operando em nichos específicos de forma primorosa e a abrangência
do sistema é ampla.
No
cinza temos alguns números mostrando indigentes do crédito: o financiamento PF até R$ 5 mil está estagnado nos mesmos R$ 200
bilhões desde dezembro, quando aumentou apenas 2%; a inadimplência para
aquisição de outros bens PF está em 13%, que, quando acrescida dos 8% de
atrasos de 15 até 90 dias, mostra que 21% dos compradores de geladeiras, lavadoras,
etc. não está adimplente é seis vezes maior que a morosidade média no mundo. Há
também taxas médias para conta garantida de 111% e cheque especial de 188%, que
indiscutivelmente são insustentáveis.
Na
média, o sistema está cada vez mais na fase amarela. Um indicador agregado importante
é a relação crédito/PIB que está num patamar próximo ao da Bolívia, um nível
baixo, considerando a sofisticação da intermediação e o dinamismo da economia
brasileira. Está crescendo a uma taxa média de 2% ao ano, o que
faria com que demorasse mais de uma década para alcançar o nível do Chile hoje,
ou 40 anos para ficar na média mundial atual.
Amarelando ainda mais o quadro, a taxa está caindo, o que por si só é outro
sinal de alerta forte.
Há outros indicadores de distorções. A oferta de
crédito é instável e ineficiente, as taxas cobradas e a composição da oferta de
financiamentos são voláteis e as margens são as segundas mais altas do mundo. A
inadimplência está alta e subindo. A serventia da intermediação é baixa; uma
sondagem do Sebrae mostra que mais de dois terços das empresas nem sequer buscam
por empréstimos bancários. Apesar dos sintomas, continua-se negando a
realidade. Afinal, o sistema é sólido e lucrativo. A miopia impera.
O
ponto é que os sinais são de que pode haver problemas, não de que haverá. Se
ajustes forem feitos, pode-se
duplicar a relação crédito/PIB, algo que interessa a todos, em especial aos
bancos que podem ter lucros mais sólidos por mais
tempo. Futuro se faz, não se espera.
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